"Nem terminei o raciocínio e ouvi um forte murro na mesa. Foi um murro de aviso, que me disse mais do que qualquer palavra falaria"
A primeira surra veio após
eu descobrir quem era Jorge, de verdade. Um dia ele viajou. Disse que ia
até a capital resolver alguns assuntos. Como havia dito, ele era
caminhoneiro, então sempre viajava, sempre estava ausente. Após o
terceiro mês que estávamos juntos, suas viagens passaram a ser
frequentes.
Desta vez, ela durou muito. Mais do que o
de costume. Ele havia viajado para a capital do estado e não ficava tão
distante assim a ponto de já se passar mais de 30 dias. Comecei a ficar
preocupada com aquilo. Até que uma vez, avistei outro caminhoneiro,
conhecido nosso, e lhe perguntei sobre Jorge.
Ele hesitou muito em falar, e percebi
que não gostaria de responder nada. Ainda assim insisti muito. Mas ele,
visivelmente constrangido, dizia que não sabia por onde andava.
- Você está mentindo! – disse bem brava.
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O interessante é que 2 dias depois,
Jorge apareceu. Estava mais gordo, barba feita, uns tipos de roupa
diferentes. Aquilo parecia um personagem, como se o meu Jorge quisesse
se esconder atrás daquele outro que estava à minha frente e havia
esquecido de tirar a fantasia.
- Bem sei que andas perguntando sobre mim para todo o mundo...
- Estava preocupada, afinal, você já estava longe havia mais de 1 mês...
Nem terminei o raciocínio e ouvi um
forte murro na mesa. Foi um murro de aviso, que me disse mais do que
qualquer palavra falaria. Queria me intimidar, que eu sentisse medo, que
eu soubesse muito bem com quem estava me metendo, que eu não tinha nada
com a vida dele, apesar de eu fazer parte dela.
Foi quando lembrei-me do meu primeiro
marido, das surras, das injustiças, das humilhações e da promessa que
fiz que nunca passaria por isso novamente. Então, rebati. E me
arrependi. O provoquei, perguntei se estava me traindo, se havia outra
mulher entre nós.... Ele riu, debochou. E disse que viajaria à capital
no mês seguinte.
- E ai de ti que fique por aí perguntando por mim. – ameaçou-me com o indicador apontado para o meu rosto.
Fiz pior. Não perguntei a ninguém sobre
ele. Isso, aliás, deveria ter feito antes de me juntar a ele. Estava tão
louca, apaixonada, que acreditei piamente em meus sentimentos. Claro, a
minha cabeça avisava-me que deveria esperar, que não havia necessidade
de mergulhar em um poço que parecia tão raso. Mas para mim era tudo tão
profundo, meu coração estava encharcado de paixão. E agora o que me
restava era correr atrás do tempo perdido, talvez houvesse conserto.
Talvez Jorge estivesse passando por uma situação difícil. Quem sabe uma
doença? Na capital há muitos hospitais especializados. Há tratamento
para todo tipo de ruindade de pele e de cabeça. Gostaria de ajudá-lo,
reatar o relacionamento bruscamente afetado. Seria ciúmes dele? Ou quem
sabe um sentimento de posse, para que eu ficasse sempre à sua espera sem
que eu invadisse demais a privacidade dele? Mesmo assim, nada disso
seria certo. Eu precisava saber o que se passava com ele. Éramos
companheiros, para ele casados, inclusive, ainda que não oficialmente.
Para ter certeza, o segui. Esperei ele
entrar no caminhão. Poucos minutos depois, apanhei um táxi. Sabia que
ele voltaria à capital. Não era muito longe, mas o suficiente para
acabar com quase todo o dinheiro que tinha. Jorge também não costumava
deixar nada para mim. Dizia que eu sabia me virar bem no salão, mesmo
sabendo que às vezes não aparecia cliente algum.
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O caminhão dele entrou numa rua pouco
movimentada. Ali ficavam vários caminhões estacionados. Depois, entrou
num ônibus e seguiu. Fui no táxi atrás, sempre atenta para ver onde
saltaria. Após uns 15 minutos, mais ou menos, desceu. Eu pedi para que o
taxista me esperasse e fui a pé atrás do Jorge.
Caminhando a passos largos, parou em
frente a uma casa. Uma residência bem jeitosa, pintada de amarelo bem
clarinho e detalhes em marrom. Antes de apertar a campainha, retirou um
pente do bolso, penteou os cabelos e, para a minha surpresa, abriu o
portão com uma chave que tirou do outro bolso.
Um cachorro apareceu tão eufórico que
tive a impressão de que se conheciam de longa data. Em seguida, duas
crianças correram e pularam em seu colo. O meu coração pulava tão forte,
que pareciam batidas de um tambor.
Respirei fundo e voltei para o táxi
antes de ter a minha pressão baixa. Fiquei em um albergue, já que o
dinheiro não era muito realmente. No dia seguinte, bem cedo, apareci
próximo à casa. E enquanto pensava se iria até lá para tirar satisfação,
muitos outros pensamentos me dominavam. Estava inundada de incertezas.
Mas necessitava tirar aquela história a limpo. E quando dei por mim, lá
estava eu, inerte, em frente ao portão. Minhas mãos gelavam, meus dedos
suavam, a minha pressão estava caindo. Desisti. Voltei as costas para
sair, quando ouço uma voz:
- Mamãe, tem uma mulher aqui. – fechei os olhos, mas encarei a situação. Não havia mais alternativa.
Ela veio até mim. Era uma mulher de
traços bonitos que pareceria mais bela se se cuidasse mais. Tinha o
cabelo à meia altura amarrado para trás, alguns fios desalinhados
mostravam que estavam desidratados e com mais de uma cor. Os olhos
firmes e ao mesmo tempo desconfiados me olhavam como se eu fosse uma
intrusa ou uma transeunte querendo alguma informação sobre a região. Não
sei ao certo o que deve ter se passado em sua mente.
- Estou procurando uma casa para alugar.
Gostaria de saber se você sabe se há alguma por aqui. – Tentei e
consegui disfarçar ao máximo. Ela riu com ar de decepção e me pediu
desculpas por não saber e não poder me ajudar. Pareceu-me simpática e
educada, do tipo de pessoa que se incomoda consigo mesma por não saber
como providenciar auxílio ao próximo.
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Após aquele breve momento, voltei para a
minha cidade. Para a minha surpresa, Jorge já estava lá. Voltara na
mesma noite anterior. Puxou-me pelo cabelo, me rodou e jogou no chão.
Fui chutada várias vezes até vomitar. Foi quando ele parou.
- Pensas que não sei onde esteves ontem?
Pensas que não sei que foste atrás de mim até a capital? O que queres
saber de mim? Pergunta e eu te responderei! Queres saber daquela mulher?
Ela é minha esposa. Queres saber daqueles meninos? São meus filhos.
Ainda com a boca suja e chorando não sei
se de dor no corpo ou de decepção, esbocei alguma reação inútil para
falar, mas não conseguia. Ele, porém, conhecendo-me bem, respondeu à
minha pergunta sem que ela tivesse sido feita:
- Queres saber por que vim morar contigo
se já sou casado? Pois bem, porque queria me divertir contigo. Queria
saber como era ter uma família numa cidade e uma mulher em outra. Estás
satisfeita com a minha resposta? Mas não pensa que foste de todo usada.
Foste para mim uma mulher que me atraiu. Eu gostei de ti, mas comecei a
ti rejeitar quando senti que querias me prender a ti. Sou um homem
livre, ainda que casado. E não aceito domínio de mulher sobre mim.
Essa era a razão de Jorge sempre se opor ao casamento comigo. Fui enganada. Mas isso não ficaria assim.
Ele, apesar de tudo, continuou comigo.
Não me bateu mais. Disse que gostava de mim, e que desejava manter as
coisas como estavam. Mas não era esse o meu sonho, o meu desejo de
formar uma família, que até então era formada apenas por mim e por
Pingo, o meu vira-lata. Não concordei, logicamente, então, terminei o
relacionamento formado havia menos de 1 ano. Jorge, nem por um instante
aceitou. Recusou e passou a me ameaçar. Queria me ter a qualquer custo. E
por causa da minha constante recusa, resolveu me ameaçar.
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É por isso que estou aqui, presa. Não
aguentei a quantidade de ameaças. Não suportei o medo que o meu passado
me trazia. O medo do retorno das humilhações, dos espancamentos, do
desprezo e, o pior, da prisão. Na verdade, o aprisionamento de uma
relação sem futuro, de um caso sem solução para mim – era o que eu
pensava. E como os meus sentimentos me jogaram para aquela situação,
agora estavam me lançando para outro problema.
O esperei chegar. Peguei uma arma
comprada no mercado negro e me livrei dele ali mesmo, em casa. Fui
sozinha à delegacia. Apresentei-me ao delegado, que me prendeu. Fui
levada, semanas depois, ao presídio feminino. Estou aqui até hoje. Isso
já faz mais de 3 anos. Naquele momento, senti-me liberta das ameaças de
morte, mas fiquei aprisionada não apenas no crime, como também em todo o
enlaço que fui tecendo ao longo daqueles anos. E os meus sentimentos, a
minha paixão, como um demônio que me instigava, me abandonaram.
Largando-me sozinha com a minha consciência.
Aquela jovem me ouviu, e desta vez não
me interrompeu. Deixou-me fluir naquelas lembranças, como a uma sinfonia
que se ouve sem ousar suspender. Reparei na serenidade dela e
perguntei-lhe se estava satisfeita com a minha história. Ela só me disse
que, na verdade, a minha história, o meu passado, aquilo a que eu dava
tamanha importância, estava me tornando cativa de mim mesma.
Ela me deu um livro, que dizia que eu poderia sim voltar a ser uma mulher de verdade.
A mulher que nunca fui, não por não querer, mas por não saber como ser.
Ainda continuo na cela, pagando pelo crime que cometi. Mas estou livre
de mim, da paixão, dos sentimentos que me laçaram a alma e do meu
passado sufocante. Estou atrás das grades, mas livre das correntes
invisíveis que me prendiam.
Na próxima semana, saiba como termina a história da pétala Ana Rosa.
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